O Status dos Sábios no Governo Islâmico
Dr. Ragueb El Serjani
Tradução: Sh. Ahmad Mazloum
O papel do Estado na educação dos estudiosos não é menor do que o papel da família. Pelo contrário, muitas vezes é superior ao papel da família. É obrigação do Governo patrocinar, formar e prestar atenção às condições dos sábios, para que o território governado possa triunfar em seu caminho para construir um renascimento, para guiar a sua marcha rumo ao progresso e independência e para se libertar do jugo da dependência.
Exemplos da preocupação do Estado com os sábios
Na verdade, o Governo Islâmico nunca negligenciou seu papel fundamental no campo do conhecimento, mais ainda, seu papel foi predominante. Escolas, faculdades, bem como as bibliotecas públicas e privadas se multiplicaram em todo o mundo muçulmano. A esse respeito, a história lembra um grande número de califas muçulmanos e príncipes que tiveram um papel importante na assistência aos estudiosos e estudantes.
Na vanguarda dos califas temos o califa abássida Harun Al-Rashid, de quem Abdullah ibn Al-Mubarak[1] disse:
Eu nunca vi um grande número de estudiosos, recitadores do Alcorão, homens que competem nas benfeitorias, que conservam as proibições em qualquer época - exceto a época do profeta e dos califas probos e dos companheiros - como na época de Al-Rashid. O menino memorizava o Alcorão tendo apenas oito anos de idade, outro menino já tinha profundo conhecimento sobre jurisprudência, hadith, coleções de poesias e fazia debates acadêmicos com os professores com apenas onze anos"[2].
E isso só aconteceu por causa de seu alto investimento e preocupação com a ciência e seus estudantes desde a idade precoce.
Um olhar sobre o número de escolas e hospitais que foram construídos na época do renascimento e da civilização islâmica pode te mostrar como foi o papel do Governo na formação dos estudiosos desde pequenos. Havia escolas para ensinar e interpretar o Alcorão, outras escolas para o ensino do hadith, jurisprudência (fiqh), medicina, além de escolas especiais para crianças órfãs.
Depois da etapa juvenil, o Governo também teve papel de destaque na assistência aos seus estudiosos, a quem deu o devido cuidado de forma conveniente ao status dos sábios. Primeiro, o Governo proporcionava salários que garantiam uma vida decente para eles, além de outros subsídios. O Sheikh Najm Al-Din Al-Khabushany foi nomeado pelo sultão Salah Al-Din (Saladino) como um professor na escola deste último, Al-Salahiyyah. Al-Khabushany recebia 40 dinares para o ensino, 10 dinares por supervisionar doações à escola, 60 libras egípcias de pão por dia, e duas cantinas de água do Nilo por dia[3].
O salário mensal dos Sheiks de Al-Azhar costumava incluir uma provisão para as despesas de sua mula. Isso porque os erários de Al-Azhar incluíam algumas doações especiais para as despesas das mulas dos sheikhs de Al-Azhar[4]. Ações como essa são consideradas uma maneira de dar aos estudiosos a oportunidade de dedicar-se à escrita, à criação e ao ensino e benefício das pessoas nos assuntos da religião e da vida mundana. Merece ser destacado aqui que os professores, já naquela primeira época, tinham um sindicato particular para o qual eles escolhiam o chefe, enquanto o sultão só podia intervir nessa união se ocorresse uma divergência entre os seus membros.
A este respeito, Abu Shamah[5] relata em seu livro Al-Rawdatayn àn Muqallid Al-Dawla`y:
Quando Al-Hafidh Al-Muradi morreu, nós juristas nos dividimos em dois grupos: árabes e curdos. Alguns de nós preferiram seguir a escola (mazhhab) e queríamos convocar sheikh Sharaf Al-Din ibn Abu Asrun[6], que estava em Mosul, e alguns de nós tenderam à ciência de debates e opiniões diversas e queríamos chamar Al-Qutb de Al-Nissaburi, que visitou a Jerusalém e voltou para territórios estrangeiros. Houve disputa por causa deste assunto causando intriga entre os juristas. Então, Nur Al-Din soube e convocou os juristas para o castelo em Halab (Aleppo). Majd Al-Din ibn Daia saiu para encontrá-los em nome de Nur Al-Din, e disse-lhes: “Construímos escolas para disseminar o conhecimento, refutar heresias e consolidar a religião, e o que aconteceu entre vocês não convém”. Nur Al-Din disse: “Satisfazemos os dois grupos, e os dois sheikhs serão convocados”. Chamou-os e nomeou Sharaf Al-Din como chefe da escola, que foi nomeada com seu nome após ele, enquanto Qutb Al-Din foi nomeado chefe da Escola de Al- Nafari[7].
Em outra etapa, o papel do Governo no tratamento dos sábios inovadores foi um pouco diferente. Como exemplo, o terceiro califa da dinastia almóada (os unificadores), Al-Mansur Yaqub ibn Yusuf ibn Abdul-Mu’ min, criou a Casa de Estudantes para alunos talentosos e a supervisionava pessoalmente. Alguns de seus acompanhantes invejavam os alunos pela nobre posição que tinham junto dele, pois ele os aproximava em suas sessões e também tinha sessões particulares com estes estudantes. Quando Al-Mansur soube disso, ele se preocupou e disse-lhes: “O almóadas, você são tribos e, quando ocorre algo com algum de vocês, recorre à sua tribo. Mas esses alunos não têm nenhuma tribo, exceto eu. Se algo os preocupa, eles podem recorrer a mim. Eles pertencem a mim ....”[8]. Assim, a dinastia almóada se firmou e predominou.
Abu Ubaid Al-Qasim ibn Salam[9] tem uma história curiosa com Abdullah ibn Tahir[10], uma história que indica que os príncipes valorizam os estudiosos e honravam os talentosos entre eles. Quando Abu Ubaid `Al-Qasim ibn Salam escreveu seu livro Gharib Al-Hadith, ele apresentou o livro a Abdullah ibn Tahir, que gostou do livro e disse: “Um homem cuja mente o inspirou a escrever esse livro merece não ter necessidade de procurar o sustento". Então, ele estabeleceu 10 mil dirhams por mês para ele[11].
São famosos os grandes prêmios e conceções feitas pelos califas e governadores para os estudiosos no intuito de incentivá-los a adquirir mais conhecimento. Esses prêmios eram, por vezes, além da imaginação. Por exemplo, um livro traduzido para o árabe foi pesado em ouro e o ouro foi dado para o tradutor[12]. O resultado foi um ativo movimento de tradução, levando à tradução de grandes ciências para os muçulmanos.
Mais impressionante é o feito do Império Otomano, quando este conseguiu reunir os estudantes talentosos de todas as vilas e cidades, e deu toda a assistência a eles. Isso fez com que todos os estudantes talentosos dessem o máximo que tinham de artes e ciências, contribuindo assim para o progresso do império cultural e militarmente, até que se tornou o número um do mundo.
O interesse do Governo não se resumia apenas aos seus sábios; os governantes chamavam estudiosos de várias regiões para se beneficiarem de seus conhecimentos e para terem o prazer de prestar assistência a eles. O emir Al-Mu`izz ibn Badis, da dinastia Sanhaji no Oriente árabe, sempre que ouvia sobre algum sábio o trazia na sua presença e, ainda mais, o tornava dos seus particulares e o honrava profundamente, confiava em suas opiniões, e lhe concedia os mais altos escalões.[13]
O sultão otomano Muhammad Al-Fateh (Mehmet) nunca ouviu falar de um estudioso pobre sem que ele corresse para ajudá-lo e se empenhasse para fornecer-lhe meios de subsistência[14].
Essa imagem se esclarece quando ele diz na recomendação que fez ao seu filho quando estava no leito da morte. Ele disse: "... e sendo que os estudiosos são como o poder espalhado no corpo do Governo, honre-os e incentive-os. Se você ouvir falar de um deles em outro país traga-o e honre-o com dinheiro"[15].
Isto é o que encontramos sobre o relacionamento do Governo Islâmico com todos os sábios, sem distinguir entre muçulmanos e adeptos de outras religiões e crenças. Exemplo disso é a família de Bukhtishu Nestoriano, os membros desta família foram médicos da dinastia abássida por quase 70 anos (desde a época de Al-Mansur até a época de Al-Mu`tamid). Sempre tiveram os devidos cuidados e atenção exclusiva[16]. Um membro desta família, Gabriel ibn Bukhtishu ibn Georges (falecido em 213 d.H.) foi o médico e amigo íntimo do califa Harun Al-Rashid. Sua relação com a Al-Rashid ficou tão forte a ponto de Al-Rashid dizer aos seus companheiros: "Quem precisar algo de mim pode falar com Gabriel."[17]
Assim também ocorreu com Ibn Maimun Al-Andalusi (Maimônides de Andaluzia), que era judeu, era o médico particular de Saladino, que tinha um cuidado e preocupação especial por ele[18].
E os governantes e príncipes tinham outros meios, quando não conseguiam atrair os estudiosos, tais como a compra dos livros científicos dos estudiosos imediatamente após eles acabarem de escrevê-los. Por exemplo, quando o califa omíada Al-Hakam da Andaluzia ouviu falar sobre o livro Al-Aghany, um livro de literatura famoso até hoje, ele enviou imediatamente para o seu autor Abu Al-Faraj Al-Asfahany[19] mil dinares de ouro, como preço de uma cópia do livro para enviá-la a ele em seu país. Al-Asfahany fez e enviou uma cópia do livro, que foi lido em Andaluzia antes mesmo de ser lido no Iraque, a pátria do autor!
A atenção despendida pelos califas, príncipes e notáveis da civilização islâmica para os estudiosos, cuidando deles, aliviando seus sofrimentos e encorajando-os a dedicar-se à difusão do conhecimento comprova o pioneirismo desta civilização em abraçar os sábios. Isso, sem dúvida, dá uma imagem oposta do que observamos na Europa, onde os cientistas foram mortos, seus livros foram queimados e as instituições que governavam o povo - de todos os credos – eram obrigadas a se submeter às superstições da Igreja.
[1] Abdullah ibn Al-Mubarak, Abu Ja`far Muhammad ibn Abdullah ibn Al Mubarak Al Qurashy (falecido em 868 d.H./254 d.C.), juiz de Hilwan, no Iraque, um estudioso confiável do hadith. Veja: Ibn Makula, Al Ikmal, 7 / 239, e Al Zirikli: Al Alam ", 1 / 222.
[2] Abu Muhammad Abdullah ibn Musslim ibn Qutaybah Al Dinwary: Al Imamah wa Al Siyasah (O Imamato e a Política), conhecido como Al Tarikh Khulafá (A História dos califas), 2 / 157.
[3] Al Suiuti: Husn Al Muhadarah (A melhor maneira de Docência), 2 / 57.
[4] Ver: Mustafa Al Siba `y: Min. Rawai Hadharatina (Das obras primas da nossa civilização), p. 102.
[5] Abu Shamah, Abdul-Rahman ibn Isma `il ibn Ibrahim (599-665 d.H./1202-1266 d.C.), um estudioso do hadith, comentarista e narrador do Alcorão, jurista e estudioso dos fundamentos do Fiqh. Ele nasceu e cresceu em Damasco e assumiu o posto de chefe de Dar Al hadith. Veja: Ibn Asakir, Tarikh Dimashq (História de Damasco), 66 / 3, e Al Shatbi: Ibraz Al Ma`ani min Hirz Al Amany, 01/01.
[6] Ibn Abu `Asrun, Abdullah ibn Muhammad ibn Hibatullah Al Tamimy (492-585 d.H./1099-1189 d.C.), um jurista Shafi’i, nasceu em Mosul, se mudou para Bagdá e estabeleceu-se em Damasco, onde ele assumiu o Judiciário em 573 d.H. A escola Al `Asruniyyah em Damasco foi nomeada com seu nome.
[7] Ver: Abu Shamah Al Maqdisy: Al Rawdatayn fi Akhbar Al Nuriyah wa Al Salahiyyah, p. 17.
[8] Al Marrakeshi: Al Mu `jib fi Talkhis Akhbar Al Maghrib, p. 81.
[9] Abu Ubaid Al Qasim ibn Salam: Abu Ubaid Al-Qasim ibn Salam Al-Harwy (157-224 d.H./774-838 d.C.), um dos grandes sábios de literatura, hadith e jurisprudência. Ele nasceu e foi educado em Harah, se mudou para Bagdá e para o Egito, e morreu em Meca. Veja: Al Zhahabi: Siyar Alam Al Nubala, 10/490-492.
[10] Abdullah ibn Tahir, Abu Al`Abbas Abdullah ibn Tahir ibn Al Hussain Al Khuza` y (182-230 d.H./798-844 d.C.), foi um dos governantes mais famosos da época abássida. Ele foi nomeado governador da Síria, Egito, Khorasan, Tabaristan, Kerma e al-Riyy e morreu em Nisabur ou em Merw.
[11] Ver: Al Khatib Al Baghdadi: Tarikh Bagdá (História de Bagdá), 12/406; Ibn Asakir: Tarikh Dimashq (História de Damasco), 49/74, e Ibn Hajar: Tahdhib Al Tahdhib, 8 / 284.
[12] Ver: Ibn Sa `id Al Andalusy: Tabaqat Al Umam, p. 48, 49.
[13] Ver: Ibn `Azary: Al Bayan Al Mughrib fi Akhbar Al Andalus wa Al Maghrib, p 129.
[14] Ali Muhammad Al Salaby: Al Dawlah Al Uthmaniyyah Awamil `Al Nuhud wa Asbab Al Suqut (Império Otomano, fatores do progresso e causas da decadência), p 140.
[15] Idem, p 148.
[16] Al Zirikli: Al A´lam, 2 / 44, 45.
[17] Idem, 2 / 111.
[18] Idem, 7 / 329.
[19] Abu Al Faraj Al Asfahany, Ali ibn Al Hussain ibn Muhammad Al Qurashy Al Umawy Asfahany (de Isfahan), era um escriba, autor do livro Al-Aghany. É dito que ele era um descendente do califa Hisham ibn Abdul Malik. Ele é de Asfahan e cresceu em Bagdá. Veja: Al Zhahabi, 16/201 e Ibn Khillikan, Wafiyat Al A´aian (Biografias dos Notáveis), 3 / 307.