A Busca do Conhecimento e a Formação dos Sábios
Dr. Ragueb El Serjani
Tradução: Sh. Ahmad Mazloum
Primeiro, devemos notar que os estudantes da civilização islâmica estabeleciam uma grande meta em suas vidas: a elevação e o progresso de sua civilização entre as civilizações do mundo. Essa meta não era um fim em si, mas uma maneira de agradar ao Senhor do Universo.
A pessoa se surpreende quando lê que os cientistas da Grécia antiga foram ridicularizados pelo público e eram um exemplo flagrante de zombaria para aqueles que queriam ridicularizar esta grande civilização[1].
No entanto, a civilização islâmica declarou explicitamente desde o início da revelação ao profeta (a paz esteja com ele) que os sábios são os mais tementes a Allah. Allah (exaltado seja) diz: “Apenas os sábios temem verdadeiramente a Allah, entre Seus servos” (Fatir: 28). E a partir daqui, esses valores foram inculcados em cada indivíduo dessa civilização. Os muçulmanos sabiam que os cientistas são os verdadeiros mestres desta nação, porque “os sábios são os herdeiros dos profetas".[2]
Assim, milhares dos filhos desta civilização levantaram-se, desde a sua tenra idade, para buscar o conhecimento em todas as partes, e a educação desses estudiosos foi um eterno exemplo a ser copiado e uma história imortalizada.
Algumas das condutas de quem procura o conhecimento
Os alunos desta civilização se apoiaram na humildade e na perseverança na aquisição de conhecimentos. Abdullah ibn Abbas, o grande estudioso desta nação, narrou: "Quando o Mensageiro de Allah (a paz esteja com ele) morreu, eu disse para um homem do Anssar (socorredores):
Vamos perguntar aos companheiros do mensageiro de Allah (a paz esteja sobre ele), pois hoje eles são muitos. Ele disse: “Você é incrível Ibn Abbas, você acha que as pessoas estão precisando de você, enquanto os companheiros do profeta estão entre as pessoas"[3] Ele disse: “O homem saiu e eu comecei a perguntar para os companheiros do profeta sobre o hadith. Às vezes, quando me era relatado um hadith por um homem, eu vinha até a sua casa e deitava no meu roupão na frente de sua casa, enquanto o vento soprava poeira sobre mim, enquanto ele estava tomando uma sesta (dormia no horário do meio da tarde). Quando o homem saía e me via, disse: ‘Ó primo do mensageiro de Allah, o que te trouxe até aqui? Era melhor chamar-me e eu ia até você’, eu dizia: ‘Sou eu quem deve vir’ e comecei a perguntar-lhe sobre o hadith. O homem Anssari viveu até que ele viu as pessoas reunidas em torno de mim e me perguntando. Ele (o Anssari) dizia: ‘... Esse menino era mais sábio do que eu’".[4]
Portanto, a concorrência entre os amigos na busca do conhecimento era uma das características desta civilização. Sempre que lemos sobre qualquer época da civilização islâmica, encontramos um espírito de concorrência entre os que buscam o conhecimento. Neste contexto, muitas histórias emocionantes são relatadas. O jurista de Madinah Salih Ibn Kaysan (falecido em 140 d.H.) disse:
Eu me encontrei com Al-Zuhri (Muhammad ibn Shihab) quando estávamos adquirindo conhecimento. Dissemos:
“Vamos escrever a Sunnah (tradições proféticas), então, gravamos tudo o que foi relatado da parte do profeta (paz esteja com ele)”. Ele me disse: “Vamos gravar o que é relatado dos companheiros, porque também é Sunnah”. Eu disse: “Não, não é Sunnah, e por isso não anotaremos”. Mas ele escreveu o que eles disseram e eu não escrevi e por isso ele teve êxito e eu perdi... .[5]
Surpreendentemente, os califas e príncipes zelavam em buscar o conhecimento a partir de uma idade precoce. Alguns deles desejavam retornar a esses dias solenes e invejavam os alunos pobres, que buscam o conhecimento incansavelmente. O califa Al-Mansur (falecido em 158 d.H.), em sua juventude, buscou o conhecimento de suas fontes, o hadith e fiqh (jurisprudência). Ele adquiriu uma parte razoável do conhecimento. Foi dito a ele um dia:
“Ó líder dos crentes, há ainda algo de prazeres que não alcançaste até agora?" Ele disse: "Uma coisa". Eles disseram: "O que é isso?" Ele disse: "É quando um muhaddith (estudioso do hadith) diz a um sheikh: “Quem você mencionou - que Allah tenha misericórdia de você"? Então, seus ministros e seus escribas se encontraram e se sentaram em volta dele e disseram: "Estamos prontos, ó líder dos crentes, pode ditar algo do hadith para nós". Ele disse: "Vocês não são deles, eles são aqueles de roupas sujas, têm seus pés rachados, seus cabelos longos, viajam entre os países, às vezes, no Iraque, às vezes na Península, às vezes na Síria, e às vezes no Iêmen. Eles são os transmissores do hadith".[6]
A preocupação dos pais com a educação dos filhos
Os pais se preocupavam em educar e orientar seus filhos desde pequenos e os acostumavam na missão de buscar o conhecimento. Um exemplo é o erudito da Andaluzia, Al-Humaidi (nascido antes de 420 d.H.), seu pai o carregava nos ombros para assistir as aulas de hadith em 425 d.H. Em 448 d.H., ele partiu para o Egito depois que ouviu de Ibn Abdul-Barr[7] e Ibn Hazm, memorizou seus livros e analisou-os com ele, tomou muito de seu conhecimento e o acompanhou. Ele também freqüentou aulas em Damasco e em outros lugares. Ele narrou de Al-Khatib Al-Baghdadi e escreveu sobre a maioria de suas obras. Frequentou aulas de Al-Zanjani em Makkah, habitou em Wasit (no Iraque) por algum tempo depois que ele deixou Bagdá. Em seguida, retornou a Bagdá, morou nela e escreveu muito sobre hadith, literatura e outras artes. Al-Humaidi compilou várias obras, e foi um dos líderes dos muçulmanos na memorização, conhecimento, competência, credibilidade, honestidade, nobreza, religião, devoção e integridade. A ponto de alguns grandes sábios que encontraram muitos imams dizerem: “jamais os meus olhos viram igual a Abu Abdullah Al-Humaidi em sua virtude, nobreza, integridade, grandeza de conhecimento e zelo na difusão do conhecimento[8].
Mais incrível ainda é a participação dos pais com seus filhos na viagem em busca do conhecimento. Isso aconteceu com Ubadah ibn Al-Walid ibn Ubadah ibn Al-Samit e seu pai Al-Walid. Ele disse: "Eu saí com meu pai para buscar o conhecimento nesta região dos anssar, antes deles morrerem. O primeiro que conheci foi Abu Al-Yusr, um companheiro do mensageiro de Allah, com um menino com ele. E citou o hadith."[9]
A viagem para buscar o conhecimento com os filhos foi um novo acréscimo islâmico no curso da civilização humana, nenhuma classe se distinguiu das outras nesta matéria. O líder dos crentes Sulayman ibn Abdul-Malik, por exemplo, viajou junto com seus dois filhos para conhecer Ata. Sentaram-se enquanto ele estava orando. Quando terminou sua oração, ele se virou para eles e ficaram perguntando a ele sobre os rituais do hajj (peregrinação) até que ele virou o rosto. Sulayman disse a seus filhos: "Levantem-se". Levantaram-se e disse-lhes: "Ó meus filhos, não se atrasem em buscar o conhecimento"[10]. O califa Harun Al-Rashid também viajou com seus filhos, Al-Amin e Al-Ma’mun, assistiram a palestras sobre Al-Muwatta, o famoso livro de hadith compilado pelo Imam Malik em Madinah[11].
Alguns pais impediram os filhos de buscar conhecimento, devido às dificuldades e falta de dinheiro. Mas a comunidade zelava em ajudar os estudantes talentosos a continuarem a busca de formação. Ibn Kathir narrou que o pai de Hashim ibn Bashir ibn Abu Hazim Al-Qasim Abu Mu`auiah Al-Silmi Al-Wasiti era cozinheiro de Al- Hajjaj ibn Yusuf Al-Thaqafi e em seguida, vendedor de picles. Ele impediu seu filho de sair em busca do conhecimento a fim de ajudá-lo em seu trabalho, mas o filho recusou e insistiu em ir às aulas de hadith. Aconteceu que Hashim ficou doente. Acompanhado por uma multidão de pessoas, Abu Shaibah, o juiz de Wasit, veio visitá-lo. Expressando alegria em ver isso, Bashir disse: “Ó meu filho, tem-se tornado tão grande que o juiz veio à minha casa? Eu não vou mais impedi-lo de ir às aulas de hadith”. Hashim foi um estudioso e transmitia o hadith de Malik, Shu`bah[12], Al-Thauri[13] e outros. Ele também era dos íntegros e devotos.[14]
Não há dúvida de que esta responsabilidade social é que faz o juiz da cidade e muitos dos notáveis da cidade visitarem um pobre rapaz, que não tinha nada além da perseverança na aprendizagem e empenho para ser bem-sucedido na ciência. Isto confirma que a civilização islâmica respeita o conhecimento e todos os envolvidos no processo de aprendizagem, iniciando pelos alunos e finalizando com os estudiosos e professores. Esta ocorrência e outras similares a ela, sem dúvida, aprofundam a nossa convicção de que a civilização islâmica colocou os estudantes em uma posição avançada em seu sistema social, posição que não foi encontrada em nenhuma das outras nações, que davam prioridade aos assuntos materiais, como dinheiro, poder, força, autoridade e crendice.
Mães que ensinam seus filhos
As mães também tiveram um papel inegável no incentivo dos filhos a aprender. Algumas mães foram os melhores exemplos que mostram a plena consciência das mulheres nesses tempos imortalizados de nossa civilização. Uma dessas mães foi a mãe de Rabi`at Al-Ra'y[15], o sheikh do Imam Malik. Seu marido, Farrukh, foi enviado em uma expedição para Khorasan durante a época dos omíadas, deixando sua esposa grávida de Rabi `ah. A mulher assumiu a criação e educação de seu filho. O pai deixou 30 mil dinares quando partiu. Quando ele voltou, depois de 27 anos, entrou na Mesquita de Madinah e encontrou um círculo de estudantes em torno de um sheik e, ao aproximar-se viu Al-Imam Malik, Al-Hassan e outros notáveis de Madinah. Perguntando sobre o palestrante do círculo, foi-lhe dito que ele era Rabi `ah ibn Abdul-Rahman (seu filho)!
Ele voltou para sua casa e disse à sua esposa e mãe de seu filho: "Eu vi o seu filho em uma situação na qual eu nunca vi qualquer estudioso e jurista" Ela disse-lhe: "Qual é mais preferível a você? Trinta mil dinares, ou o que ele alcançou?" Ele disse: "Não, por Deus, é este (ou seja, o status de seu filho)". Ela disse: "Gastei todo o dinheiro nisso". Ele disse: "Por Deus, você não o desperdiçou".[16]
E nos surpreendemos quando sabemos que Sufian Al-Thauri foi fruto de cuidados de sua mãe. Al-Thauri (que Allah tenha misericórdia dele) foi o jurista e muhaddith (narrador da hadith) dos árabes e o líder dos fiéis no hadith, sobre quem Za'idah[17] disse, "Al-Thauri é o mestre dos muçulmanos"[18] e Al-Auza`i[19] disse: "O único sobre quem a nação inteira tem consenso é Sufian."[20] Atrás dele havia uma mãe virtuosa que o educou e gastou para ensiná-lo, então ele foi fruto de seu esforço. Ele mesmo ilustra isso dizendo:
Eu queria buscar o conhecimento, e disse: “Ó meu Senhor, eu preciso de sustento. E eu estava vendo o conhecimento em declínio e extinção, e decidi: vou me dedicar na busca dele e pedi a Allah para me abastasse (ou seja, que lhe desse meios de subsistência suficientes).
Deus concedeu-lhe uma mãe que lhe disse: "Ó meu filho, vá em busca de aprendizado e vou poupá-lo (de trabalhar para) o sustento com a minha roda de fiar".[21] Portanto, sua mãe (que Allah tenha piedade dela) trabalhava em sua roca para pagar as despesas de livros e de aprendizagem de seu filho, para que ele pudesse se dedicar ao aprendizado. Mais importante, ela sempre o incentivava e o aconselhava a continuar aprendendo. Um dia, ela lhe disse: "Meu filho, se você escrever dez letras olhe para si mesmo: você vê em si mesmo um aumento do seu medo (de Allah), a tolerância e a humildade. Se você não vê isso, saiba que (estas letras) foram prejudiciais e não foram benéficas para você".[22]
Assim era a sua mãe, então assim ele foi... assumiu a liderança no conhecimento e o imamato na religião.
Não podemos deixar de mencionar aqui o papel da mãe na vida dos sábios famosos, como o principal compilador do hadith, Al-Imam Al-Bukhari, que cresceu órfão e cuja mãe deu-lhe a melhor educação e assistência e o encorajou a seguir o caminho do aprendizado, da piedade e das boas ações. Ela viajou com ele quando ele tinha dezesseis anos a Makkah para realizar o hajj, o deixou lá para aprender o conhecimento no idioma dos árabes nativos e, em seguida, retornar como o grande Al-Bukhari. Ela ensinou as mães muçulmanas - e as viúvas em especial – como deve ser a educação dos filhos e qual o papel das mães no progresso e do renascimento da nação.
Quanto à mãe do Imam Al-Shafi`i, ela viajou com o filho quando ele tinha dois anos. Saiu com ele de Gaza, sua cidade natal, para Makkah, onde havia o conhecimento, as virtudes e o deserto ao seu redor, onde a linguagem do menino se formará corretamente[23] . Assim, Al-Shafi `i foi fruto do esforço exercido por esta mulher virtuosa.
[1] Adam Metz: A Civilização Islâmica no quarto século da Hégira, 1 / 327.
[2] Sunan Abu Daud (3641), e Sunan Al Tirmizhi (2682).
[3] Significa que os companheiros do mensageiro de Allah (que a paz esteja com ele) são muitos, e as pessoas irão recorrer a eles e não recorrem a você.
[4] Al Faswi: Al Ma `rifah wa Al Tarikh (O Conhecimento e a História), 1 / 298.
[5] Ibn Kathir Al Bidayah wa Al Nihayah (O Princípio e o Fim), 9 / 376, 377.
[6] Ibn `Asakir: Tarikh Madinat Dimashq (A História de Damasco), 32/330.
[7] Ibn Abd Al Barr, Abu Omar Yusuf ibn Abdullah ibn Muhammad ibn Abd Al Barr Al Qurtubi Al Maliky (368-463 d.H. / 979-1171 d.C.), era o imam de sua época no hadith. Era chamado de Hafidh (aquele que tem a totalidade do Alcorão em memória) do Magrebe (Oriente). De seus escritos é Al Isti `ab fi Ma` Rifat Al Ashab (A assimilação do conhecimento dos companheiros). Veja: Ibn Khillikan: Wafiyat Al A’ Aian, 7/66-71, e Al Zhahabi: Tadhkirat Al Huffadh (Lembrança dos Memorizadores), 3 / 217, 218.
[8] Al Maqqari: Nafh Al Tib (Inspiração das fragrâncias), 2 / 113.
[9] Al Zhahabi: Tarikh Al Islam (História do Islam), 1 / 341.
[10] Ibn `Asakr, 40/375.
[11] Al Zhahabi, 40/41.
[12] Shu `bah ibn al-Hajjaj, Abu Bastam Shu` bah ibn Al Hajjaj ibn Al Ward Al Azdi Al Basri (82-160 d.H./701-776 d.C.), foi um dos imams do hadith, poesia e literatura. Imam Al Shafi `i disse: "Se não fosse Shu `bah, o hadith não teria sido conhecido no Iraque". Veja: Al Zirikli: Al A lam, 3 / 164.
[13] Sufian Al Thauri, Abu Abdullah Sufian ibn Sa `id ibn Masruq Al Thauri (97-161 d.H./716-778 d.C.), foi o comandante dos fiéis no hadith. Ele nasceu e cresceu em Kufa, e morreu em Basra. Ele compilou Al Jami ' Al Kabir (A grande compilação) e Al Jami' Al Saghir (A pequena compilação) no hadith. Veja: Al Zirikli, 3 / 104.
[14] Ibn Kathir, 10/198.
[15] Rabi `at Al Ra'y, Rabi` a ibn Abu Abdul Rahman Al Taymy, apelidado de Rabi `at Al Ra'y. Ibn Hajar disse que ele era um jurista de confiança e famoso. Ele morreu em 136 d.H. Veja Taqrib Al Tahdhib, p. 207; Tarikh Bagdá (A História de Bagdá), 8 / 420, e Al Baji: Al Ta `dil wa al Tajrih, 2 / 573.
[16] Ibn Khillikan, 2 / 289, 290.
[17] Za'idah ibn Qudamah Al Thaqafy, Abu Al Salt Al Kufy, um dos grandes Tabi `un (Seguidores, a geração seguinte à dos companheiros do Profeta). Al Zhahabi disse: “ele era Hujjah (argumento) e conhecedor da Sunnah”. Ele morreu durante a conquista dos territórios romanos em 161 d.H. Veja: Al-Zhahabi: Al Kashif, 1 / 400, e Ibn Hajar: Taqrib Al Tahdhib, p. 213.
[18] Ibn Abu Hatim: Al Jarh wa Al Ta `dil, 1 / 118.
[19] Abu Amr Al Auza`i, Abdul Rahman Ibn ` Amr (88-157 d.H.), era o imam em hadith e jurisprudência (fiqh) na Síria em sua época. Ele era confiável em sua sabedoria. Morou e morreu em Beirute. Veja: Ibn Sa `d: Al Tabaqat Al Kubra, 7 / 488, e Al Mazzi: Tahdhib Al Kamal, 17/308.
[20] Al Zhahabi: Tadhkirat Al Huffadh, 1 / 204.
[21] Abu Nu`aim: Hilyat al-Awliya, 6 / 370.
[22] Ibn Al Jawzi: Sifat Al Safwah, 3 / 189.
[23] Sobre a história da mãe do Imam al-Shafi `y, veja: Mustafa Al Sha`kah: Al A'imah Al-Arba`ah (Os quatro imams), p 10, 11.