A Moderação e o Equilíbrio na Civilização Islâmica

A Moderação e o Equilíbrio na Civilização Islâmica

Dr. Ragueb El Serjani

Tradução: Sh Ahmad Mazloum

 

          A moderação e o equilíbrio são das mais destacadas particularidades da civilização islâmica. Esta particularidade quer dizer mediar ou empatar entre dois extremos opostos, de maneira que um deles não influencie sozinho e expulse o extremo oposto, de maneira que um dos extremos não leve mais que o seu direito e domine o seu extremo injustamente. Esta é a moderação e equilíbrio dignos de uma mensagem universal e eterna, que veio para abranger todos os cantos do mundo e todas as épocas do tempo. 

          Assim, você vê a civilização islâmica unir entre a espiritualidade e a matéria, ou entre as necessidades do espírito e as necessidades da matéria, unir as ciências da religião e as ciências da vida, preocupar-se com a vida mundana como se preocupa com a Vida Eterna. Da mesma forma, une entre o idealismo e o realismo, e também, tem equilíbrio entre os direitos e os deveres.

          O significado do equilíbrio entre estes opostos é que se dê para cada extremo o seu espaço, e para cada um o seu direito com justiça, sem exagero nem negligência, sem tirania nem transgressão, assim como o Livro de Allah indicou ao dizer: “E o céu, Ele o elevou; e estabeleceu a balança. Para que, na balança, não cometais transgressão. E assim, cumpri o peso com equidade, e não defraudeis na balança” (Arrahman: 7-9).

 

 

 

Combinação dos aspectos espiritual e material

          Um exemplo para esclarecer isso: através da história das civilizações anteriores ficou comprovado que, tanto os aspectos espirituais quanto os materiais, quando sozinhos, não servem como caminho para a felicidade do ser humano. O caminho da pura espiritualidade resulta no atraso, na anulação do desejo, do pensamento e das energias de trabalho, mata o lado humano da pessoa e prejudica os benefícios do Universo. Da mesma forma, o caminho do puro materialismo resulta na tirania, injustiça, escravidão e humilhação e no domínio insano das vidas, dos bens e das honras.

          Aqui chegou a civilização eterna do Islam para casar e equilibrar entre as necessidades da alma e as necessidades da matéria, ou entre o materialismo e o espiritualismo humano. Assim, o espiritualismo disciplinado torna-se a base do materialismo disciplinado, aí o ser humano aproveita o desejo, a liberdade, o pensamento, o fruto dos esforços e do trabalho num círculo de crença e ética construídos sobre a justiça, a segurança, a estabilidade, a misericórdia e o amor[1].

          Portanto faz parte do objetivo deste equilíbrio realizar a harmonia e a concordância entre a natureza humana e o objetivo mental, e assim também a harmonia total nos pensamentos do ser humano e suas imaginações, desejos e intenções.

 

Combinação entre as ciências religiosas e ciências da vida

          E em relação à união entre as ciências da religião e as ciências da vida, o Islam construiu a sua nobre civilização sobre a abordagem da ciência, do conhecimento, da mente, da pesquisa, do experimento e da conclusão; pois considerou a vitalidade das ciências na construção do sistema de governo e da sociedade. Nesse aspecto, o Islam elogiou a ciência e os cientistas das mais variadas especialidades, que abrangem todo entendimento que beneficia o ser humano na realização de sua missão e papel na vida, que é a construção da terra e benefício de seus recursos e riquezas. Quero dizer com isso: a união entre as ciências da religião e as ciências da vida.

          A palavra “ílm” (ciência, conhecimento) foi citada no Livro de Allah (o Alcorão Sagrado) e na Sunnah de Seu nobre mensageiro (a paz esteja com ele) absoluta, sem definição nem restrição, portanto, ela indica toda ciência beneficente que objetiva o bem da vida mundana e a construção da terra... e toda ciência que almeja o benefício das pessoas e o cumprimento saudável das obrigações da sucessão humana sobre este planeta. Este termo significa - na maioria das vezes – o conhecimento em seus dois lados, o religioso e o material (vital), e tudo que foi narrado de elogio aos sábios é para todo sábio que beneficiou as pessoas com o seu conhecimento, seja ele religioso ou material. A história da civilização islâmica expressou isso com extrema sinceridade – e o que apresentaremos nos próximos capítulos de contribuições e criações dos muçulmanos nas ciências materiais ou ciências da vida pode ser o melhor exemplo e melhor expressão desta união.

          Esta abordagem equilibrada é diferente de tais civilizações onde a religião dominou as capacidades mentais e científicas e permaneceu proibindo o conhecimento e restringindo o pensamento e o uso da mente.

 

Equilíbrio entre a vida mundana e a Vida Eterna

          Em relação ao equilíbrio entre a vida mundana e a Vida Eterna, o argumento mais claro pode ser os versículos nos quais foi revelada a ordem do cumprimento da oração de sexta feira. Disse Allah, o Altíssimo: “Ó vós que credes, quando se chama à oração de Sexta-feira, ide, depressa, para a lembrança de Allah, e deixai a venda. Isto vos é melhor. Se soubésseis! E quando a oração se encerrar, espalhai-vos pela terra e buscai algo do favor de Allah. E lembrai-vos de Allah, amiúde, na esperança de serdes bem-aventurados” (Al Jumuáh: 9-10).

Esta é a posição da civilização islâmica na união entre a vida mundana e a Vida Eterna. O versículo anterior esclarece que até mesmo no dia de sexta feira temos o comércio e trabalho para a vida material antes da oração, em seguida, ir depressa para a recordação de Allah e para a oração, abandono da compra e da venda e ações similares das ocupações da vida. Na sequência , espalhar-se pela terra e procurar o sustento novamente após o término da oração, sem cair em desatenção da recordação de Allah amiúde em todas as situações, pois esta é a fonte do triunfo e do sucesso. “O favor de Allah” neste versículo significa: o sustento e o trabalho.

          Em outro versículo que menciona o equilíbrio entre o trabalho para esta vida e o trabalho para o que há depois desta vida, Allah, exaltado seja, diz: “E buscai a Derradeira Morada no que Allah te concedeu” (Al Qassas 77). O Islam não exigiu do muçulmano ser um sacerdote num mosteiro, ou um adorador num retiro, rezando de noite e jejuando de dia, sem ter parte alguma na vida e sem que a vida tenha sorte dele também. Porém, exigiu do muçulmano que seja tão somente um ser trabalhador na vida, a construindo e percorrendo os lados da Terra, e procurando o sustento em suas fontes. Assim são os membros da civilização islâmica, trabalhadores para a vida mundana e para a Vida Eterna, buscando o bem e a felicidade nas duas vidas.

 

Combinação entre idealismo e realismo

          Também faz parte do equilíbrio com o qual a civilização islâmica se destacou: a união entre o idealismo e o realismo[2] de forma firme e maravilhosa. O Islam é uma religião idealista e, ao mesmo tempo, realista. Ele almeja sempre para os seus adeptos a perfeição e os nobres ideais, porém exige os meios e o esforço através deles, e não sobrecarrega as pessoas à toa. Por isso, é difícil separar o idealismo do realismo no Islam, que é tão somente uma lei completa para os humanos que ilumina para eles os caminhos do bem, e desenha para eles as bases de conduta e as regras de relações.

          No idealismo, a civilização islâmica zela pelo alcance do ser humano o mais elevado horizonte possível para alcançar um nível nobre e alto em facilidade, conforto e tranquilidade. E no realismo, a civilização islâmica leva em consideração as condições do ser humano e sua natureza, os limites de sua capacidade, a natureza de sua formação e a realidade de sua vida.

          Na civilização islâmica, não existe tal idealismo imaginário que só existe no mundo dos sonhos, como o que Platão criou na cidade ideal, que é absolutamente distante da realidade do ser humano, dos instintos e tendências que o compõem e o defeito e limitação aos quais está sujeito.

          Também não existe na civilização islâmica tal realismo que significa o contentamento com a situação qualquer que seja, ou que a civilização islâmica sujeite os seus princípios para concordarem com a vida como quer que ela esteja, ou para acompanharem o acontecido como quer que ele esteja. A civilização islâmica não chegou para se constituir conforme os caprichos das pessoas e suas leis, ou para se contentar com as suas situações deploráveis ou com as suas tradições tortuosas, mas chegou para cancelar todos os tipos de ignorância e suas leis, e para formar de si mesma uma organização exclusivamente dela, que pode parecer em partes com a situação das pessoas e pode não parecer.

          E no equilíbrio entre o idealismo e o realismo, o Islam estabeleceu um limite mínimo ou um nível mínimo de perfeição, abaixo do qual não é permitido descer, porque este nível é imprescindível para a formação da personalidade do muçulmano de maneira razoável, e porque é o mínimo que se pode aceitar de um muçulmano para que este seja considerado um dos muçulmanos. Este nível foi estabelecido de maneira que a pessoa tenha o mínimo de preparo para fazer o bem e evitar o mal seja capaz de alcançá-lo e cumprí-lo. Este nível é composto das obrigações e das ilicitudes proibidas, e estas obrigações e proibições foram estabelecidas de maneira que cada um pode cumprir com o que elas exigem. E no caso de necessidades, a lei as considera e as mede conforme a medida necessária.

           E ao lado deste nível obrigatório, o qual todo muçulmano deve alcançar, a lei islâmica estabeleceu outro nível mais alto e mais amplo, incentivou e amabilizou as pessoas em alcançá-lo. Este alto nível abrange os atos aconselháveis e os variados tipos de adoração que o Islam incentivou e abrange também os atos detestáveis que o muçulmano deve evitar e se distanciar.

          Porém o alcance deste nível alto necessita de grande esforço que não é possível a todas as pessoas, mas depende de talentos especiais e preparo particular, com o qual se destacam uma rara minoria entre as pessoas. Por isso, o Islam não fez este alto nível obrigatório sobre todos, mas os traçou para eles e, em seguida, os deixou conforme suas capacidades... “Allah não impõe a alma alguma senão o que é de sua capacidade” (Al Baqarah: 286) e aceita de todos o que cada um cumpre conforme o seu esforço... “E, para cada um desses, haverá escalões, segundo o que fizeram” (Al An´am: 132), (Al Ahqaf: 19).

 

Equilíbrio entre direitos e deveres

          Quanto ao último equilíbrio que queremos mencionar, é o equilíbrio entre os direitos e deveres. A civilização islâmica vê que todo direito de um indivíduo ou grupo é um dever sobre outrem. Sendo assim, os direitos dos governados são, tão somente, deveres sobre os governantes; os direitos dos locatários são, tão somente, deveres sobre os proprietários; os direitos das crianças são, tão somente, deveres sobre os pais; e assim, através do cumprimento dos deveres são considerados os direitos.

          O Islam prega a realização do equilíbrio nos direitos e deveres entre o indivíduo e o grupo para equilibrar entre a tendência individual e os interesses da sociedade. O ser humano não é uma unidade vital independente do restante dos indivíduos da sociedade, mas deve viver dentro do círculo da sociedade, trocar mutuamente benefícios e interesses e criar relações. E a partir destes vínculos nasceram os direitos e deveres que a lei islâmica organizou.

          Assim, a civilização do Islam foi marcada com o equilíbrio e a moderação.

 


[1] Muhammad Zhafarullah Khan: Al Hadharah Al Islamyiah bai Al Hadharat (A civilização islâmica entre as civilizações). www.balagh.com/deen/ya1dbf66.htm

[2] Veja: Jumu’a Ali Al Khauli: O Idealismo e o Realismo no Islam (revista da Universidade Islâmica de Madinah, número 44, p 121-133).