A Abertura frente aos outros e a Tradução de todos os Fundamentos da Civilização Islâmica

A Abertura frente aos outros e a Tradução de todos os Fundamentos da Civilização Islâmica

Dr. Ragueb El Serjani

Tradução: Sh. Ahmad Mazloum

 

Introdução

Assim como os povos que entraram no Islam foram um afluente e um fator importante dos fatores de enriquecimento da civilização humana, a abertura frente às civilizações das nações anteriores e o benefício do que elas também traziam consigo foi dos mais importantes elementos da civilização islâmica e um importante fator de seu enriquecimento.

          Pela primeira vez na história da humanidade, os muçulmanos aplicam o princípio da abertura às outras civilizações, o proveito dos esforços dos antepassados. O mensageiro de Allah (a paz esteja com ele) é o pioneiro no uso deste sistema de abertura e desta visão não fanática. E quão é maravilhoso o seu conselho a Sa’d ibn Abi Waqqass para que ele vá procurar a cura com Al Harith ibn Kildah Atthaqafi, que era um médico idólatra! Ele não teve oposição alguma quanto a isso porque a medicina é, entre as ciências da vida, uma herança de toda a humanidade. É narrado por Sa’d: eu adoeci e o mensageiro de Allah (a paz esteja com ele) veio me visitar, colocou a sua mão sobre o meu peito a ponto de eu sentir o seu frescor em meu coração. Ele disse: “Você está doente, vá até Al Harith ibn Kildah irmão de Thaqif..., pois ele é um homem que faz uso da medicina. Deve pegar sete tâmaras de ájuah de Al Madinah, as espremer com seus caroços e te massagear com elas”[1].

          E também foi maravilhoso o seu conselho a Zaid ibn Thabit para que aprenda a língua siriânica. A aprendeu em sessenta dias, e assim também aprendeu a língua persa e a língua romana.

          Isso refletiu claramente na história dos muçulmanos, porque quando saíram da Península Arábica difundindo a mensagem do Islam, cuja difusão foram incumbidos de realizar a Oriente e a Ocidente, encontraram civilizações e não as apagaram nem as destruíram. Pelo contrário: esforçaram-se em estudá-las e em se beneficiar delas, pegaram o que elas possuem de benefícios e aquilo que a religião admite, diferente da civilização grega que era fechada e somente para os seus cidadãos e só assimilava de seus sábios. Assim também era a civilização persa, a indiana, a chinesa, e talvez isso tenha permanecido até pouco tempo em algumas destas civilizações, como a chinesa e a indiana.

 

         

 

 

 

 

 

O califado omíada e o movimento de tradução

Porém os muçulmanos iniciaram muito cedo o movimento de tradução e transferência de conhecimento dos outros. Khalid ibn Iazid Al Umaui[2] deu início a esse processo quando transferiu as ciências gregas para a língua árabe, em seguida, trabalhou no benefício e no desenvolvimento destas ciências, principalmente no campo dos remédios, medicina e equações químicas. 

          E quando o califado omíada se estabeleceu – e floresceu política e economicamente e herdou as ciências dos estrangeiros dentre os persas, romanos e outros depois da decadência de seus impérios – houve direcionamento para o movimento intelectual, então foram traduzidos muitos livros das civilizações anteriores, de idioma grego, persas e outros idiomas, e foram transferidas suas valiosidades em ciências para a língua árabe. Tal feito foi considerado um grande fato do ponto de vista civilizatório porque abriu uma janela pela qual os sábios árabes e muçulmanos tiveram acesso pela primeira vez ao que as outras etnias tinham de conhecimentos e ciências.

          As ciências experimentais tiveram importante parcela entre estas ciências traduzidas, e no topo de todas elas está a medicina, pois a medicina islâmica no início desta época estava baseado nos conselhos do mensageiro (a paz esteja com ele) e nas ervas e plantas medicinais, na queimação, na flebotomia, al hijamah (extração de sangue por meio de ventosas – copos), na circuncisão e em algumas intervenções cirúrgicas simples. Quando os médicos muçulmanos e árabes começaram a conhecer a medicina grega através da escola de Alexandria e de Jundaissabur[3] se deu início a preocupação deles na tradução dos livros medicinais para a língua árabe[4]. Neste assunto, por exemplo, o médico judeu Massir Juai – considerado um dos principais tradutores do califa Maruan ibn Al Hakam (64-65h) naquela época – traduziu uma enciclopédia médica denominada “al kunnash”[5].

 

 

 

 

A tradução durante o califado abássida

          E o movimento de tradução cresceu muito na era do califado abbassida, principalmente na época do quinto califa Harun Arrashid (170-194 d.H.). Ele criou “baitul hikmah” (a casa da sabedoria) e zelou em preenchê-la com livros que foram transferidos da Ásia Menor e de Constantinopla. E assim também, o sétimo califa Al Ma’mun (198-218 h), quem aumentou a atenção com “baitul hikmah”, multiplicou o prêmio estipulado para os tradutores e enviou comitivas para Constantinopla para trazerem o que puderem encontrar de livros gregos em todos os ramos do conhecimento. E quão eram grandiosos os tratados que os califas muçulmanos assinavam com os líderes de outros países, quando fazia parte dos termos do tratado que os sábios muçulmanos pudessem ter acesso às bibliotecas das igrejas e dos palácios bizantinos para traduzirem os livros que estavam nestes lugares, e às vezes, trocavam prisioneiros por livros[6]!

          Ibn Annadim[7] citou em seu livro Al Fihrasat cerca de setenta personagens entre tradutores e médicos, sábios e filósofos, engenheiros e astrônomos, isto nos séculos III e IV após a hijra. A maioria deles eram siriânicos ou muçulmanos, de origem persa e indiana. Isso indica a importância deste passo – que é a abertura com os outros e com as culturas antigas que existiam antes do Islam - e o esclarecimento de sua posição no enriquecimento e construção da civilização científica islâmica.

 

A abertura e a manutenção dos valores do Islam

          Também se deve lembrar aqui que esta abertura com os outros não foi uma abertura cega, mas era, em sua maioria, de acordo com os valores e princípios dos muçulmanos e o que a religião deles reconhece. Eles se abriram para a civilização grega, mas não tomaram suas leis e não traduziram a Ilíada, nem as maravilhas da literatura grega politeísta. Bastou-lhes o registro dos arquivos e a tradução das ciências naturais. Também se abriram para a civilização persa, porém evitaram os seus pensamentos destruidores e se beneficiaram – por exemplo – da literatura persa e das organizações administrativas que tinham. Também se abriram para a civilização indiana, porém deixaram de lado a sua filosofia e as suas religiões, estudaram a sua matemática e sua astronomia, memorizaram-nas e  as desenvolveram adicionando muito a elas.

          Acrescenta-se a isso que o benefício que os muçulmanos tiveram das outras civilizações é considerado uma vantagem que se conta para eles e não um defeito, porque significa a abertura da mente muçulmana e seu preparo para aceitar o que os outros possuem. A contribuição na caminhada da humanidade começa no último ponto que os outros chegaram e, em seguida, com o oferecimento de novidades – e é isso que iremos observar nos próximos capítulos, com a anuência de Allah – para se completar a caminhada iniciada nas civilizações anteriores.

 

 

 


[1] Abu Daud: Livro da Medicina (3875).

[2] Khalid ibn Iazid Al Umaui: Abu Hisham Khalid ibn Iazid ibn Mu’awiah ibn Abu Sufian Al Umawi Al Qurashi, era um dos mais sábios do povo de Quraish, e tem abordagens sobre o engenho da química e da medicina. Morreu em Damasco em 90 d.H. / 708 d.C. Veja: Al Safadi: Al Wafi bil Wafiat 13/ 164 -166.

[3] Uma cidade da província de Khuzistan, onde Sabur I aprisionava os romanos.

[4] Veja: Ali ibn Abdullah Al Difá: Os pioneiros da ciência da medicina na civilização árabe e islâmica, p. 68.

[5] Veja: Ibn Abu ‘Ussaibah: Tabaqat Al Atibba 1/163, Shams Al Din Al Shahrazuri: Tarikh Al Hukama, p. 80.

[6] Veja: Ibn Annadim: Al Fihrasat, p. 243 e Muhammad Al Sadiq Afifi: O desenvolvimento do pensamento científico entre os muçulmanos, p. 39.

[7] Ibn Annadim: Abul Faraj Muhammad ibn Ishaq Al Bagdadi (falecido em 438 d.H. / 1047 d.C.), historiador e literato. Era xiita e mu’tazili. Escritor de Al Fihrasat. Veja: Ibn Hajar: Lissan Al Mizan 5/72, Al Zarkali: Al A’alam 6/29.