A Civilização Romana antes do Islam
Dr. Ragheb El Serjani
Traducão: Sh. Ahmad Mazloum
A civilização romana é considerada uma das maiores civilizações da Europa após a civilização grega. Esta civilização conheceu organizações administrativas e civis novas para a humanidade, exemplo disso é a lei que eles estabeleceram, que revela o conhecimento e a experiência aos quais chegaram os seus pensadores e filósofos. Encontramos na “lei civil” deles a ideia sobre a relação do indivíduo com a sociedade, e o que ele tem de direitos e deveres.
Mesmo chegando a altos níveis em cidadania e civilização, mesmo alcançando uma força que a fez dividir o comando do mundo civilizado com os persas, a civilização romana antes do envio do profeta Muhammad chegou ao “fundo do poço” e se dirigiu aos mais baixos níveis de corrupção em todos os aspectos civilizados.
O Dr. Ahmad Shalabi resume a situação da civilização romana dizendo: “Os romanos marcharam e conquistaram a Europa durante o segundo e primeiro século a.C., em seguida conquistaram a Síria em 65 a.C., depois o Egito em 30 a.C. Assim, as mais importantes regiões das civilizações da Europa e do Oriente se submeteram a Roma, essas regiões ficaram sujeitas ao governo romano em variados tipos de pressão e humilhação, que acabou com a força de invenção e pensamento, assim a chama do desenvolvimento foi extinta sob o arco da injustiça romana. E Roma não conseguiu carregar a chama da civilização para todas as regiões que se submeteram a ela, porque Roma não nunca foi um dos centros de pensamento como era “Áin Chams” no antigo Egito, ou Atenas e Alexandria na época do florescimento da civilização grega, e com isso a atividade das civilizações pararam”[1].
A crença dos romanos e o domínio da Igreja
Mesmo com o surgimento de Jesus (a paz esteja com ele), o sistema de governo romano permaneceu politeísta durante um longo período até a era de Constantino[2] (272-337 d.C.), que governou entre 306 d.C. e 337 d.C. Este imperador realizou uma série de ações com as quais fortificou o cristianismo, depois entrou no cristianismo em seus últimos dias de vida; foi batizado quando estava no leito da morte. Os homens da Igreja não ficaram satisfeitos com tudo o que Constantino concedeu ao cristianismo, e ainda estabeleceram em seu nome o que foi denominado “concessão de Constantino”, um documento que publica que o imperador concedeu ao Papa amplas autoridades mundanas nos estados papais que foram fundados pelo Papa – Annaqqad comprovou por meios críticos minuciosos a falsidade deste documento. O importante é que a posição de Constantino quanto ao cristianismo fez os religiosos ambicionarem mais autoridade, que ultrapassava os assuntos da religião para os assuntos mundanos. Os homens da Igreja tiveram sucesso nisso e, no fim do século IV, o bispo de Milão conseguiu contrariar algumas resoluções do Imperador Teodócio (que morreu em 395 d.C.) até obrigá-lo a retirá-las[3].
E desde o início do século V a Igreja controlou muitos assuntos, principalmente as tendências de pensamento no Império Romano. Tais pensamentos que eram de raiz egípcia ou de tradições fenícias. Então, qual foi a posição da Igreja frente a estas tendências intelectuais e científicas? A sua posição se baseou nas seguintes considerações:
A Bíblia Sagrada contém tudo o que o ser humano necessita na vida mundana e na Vida Eterna. Por isso, deve ser unicamente a base das teorias e das crenças. E apenas os homens da Igreja têm o direito de interpretar os seus textos, e as pessoas devem aceitar estes textos esta interpretação sem pensar nem confrontar; Consequentemente, prevaleceu a crença que tudo além da Bíblia Sagrada é falso, e não pode ser ponderado nem ensinado; Os homens da Igreja são os representantes de Deus na terra, por isso podem castigar quem afrontar os seus pensamentos e recompensar quem os obedecer, exatamente como Deus faz com as pessoas; O cristianismo se construiu sobre os milagres e singularidades que Jesus (a paz esteja com ele) operou. E faz parte da natureza dos milagres e das singularidades contrariar as regras da natureza e as bases científicas. Como os religiosos são totalmente devotos dos milagres e singularidades, eles tomaram este caminho e combateram as ciências porque elas contrariam os milagres; Os textos cristãos se inclinaram ao abandono da vida terrena e à espera do reino dos céus sem se preocupar com o corpo, os bens e posses. E sendo que a maioria das ciências exatas difundidas no Oriente serviam à vida terrena, os pensamentos dos religiosos se direcionaram à oposição destas ciências[4];
Assim a Igreja combateu variadas ciências, combateu os sábios e monopolizou algumas áreas da produção intelectual depois de submetê-las aos textos da Bíblia Sagrada; opôs-se a muitas idéias com veemência, entre estas a medicina, a matemática e astronomia, alguns dos livros destas ciências foram eliminados e outros foram jogados em cavernas para que ninguém possa lê-los, até que o tempo os leve[5].
A Igreja permaneceu seguindo esta política por longos períodos. Quando chegou a época da liberdade e a Igreja não teve condições de queimar os livros ou prendê-los, emitiu resoluções que proibiam os cristãos de ler os livros, que segundo a opinião da Igreja, contraria a religião conforme ela definiu, ou os livros que revelavam os defeitos da Igreja. Também emitiu uma resolução que estabelecia a apostasia de quem alegava a rotação da Terra, e assim, os homens da Igreja Cristã eliminaram a enorme revolução cultural formada pelo mundo durante vários séculos. Essas pessoas também se aproveitaram das religiões e as desviaram, tornando-as meios de ignorância e treva em vez de serem chamas de luz[6].
Debate sobre o Cristianismo
Por outro lado, ocorreu em torno da religião cristã e em seu núcleo discussões filosóficas, discussões baixas e estéreis que ocuparam o pensamento da nação, consumiram os raciocínios de seus filhos e devoraram a sua capacidade ativa. Muitas vezes, transformaram-se em guerras sangrentas, mortes, destruição e castigo; ataques, saques e assassinatos. As escolas, as igrejas e as casas foram transformadas em quartéis religiosos rivais, e as cidades foram lançadas em guerra civil. A maior aparência desta rivalidade religiosa é o que ocorreu entre os cristãos da Síria e do Império Romano e entre os cristãos do Egito, ou mais exatamente entre os melcanitas e entre os manuficitas. O lema dos melcanitas era a crença na duplicidade da natureza de Jesus, enquanto os manuficitas acreditavam que ele tinha uma só natureza, a divindade na qual a natureza humana de Jesus se diluiu. Essa rivalidade se intensificou nos séculos VI e VII a ponto de parecer uma guerra entre duas religiões rivais, ou uma guerra entre judeus e cristãos, cada grupo dizia para o outro: não estão embasados em nada[7].
As classes da sociedade romana
E no aspecto social, a sociedade romana se compôs de senhores e escravos. Os senhores tinham todos os direitos garantidos, enquanto os escravos não tinham absolutamente nenhum direito civil. Na verdade, a lei romana hesitava em utilizar o termo “pessoa” para o escravo e, finalmente, saiu desta insídia denominando-o “ser não pessoal”. Também contavam o escravo como um objeto, ele não tinha direito a posse, nem a herdar, ou a casar legalmente, e seus filhos eram considerados filhos ilegítimos. Os filhos de uma serva também eram considerados ilegítimos mesmo que o pai fosse livre. O senhor tinha condições de cometer todo tipo de crime contra os escravos e escravas sem que eles tenham direito a indenização legal; o escravo não podia processar quem o molestasse dentro dos tribunais, sendo que era direito do senhor do escravo processar quem molestasse seu escravo. Ele também podia bater nele, prendê-lo, sentenciar que ele devesse combater os animais selvagens, sujeitá-lo a morrer de fome, matá-lo com ou sem motivo sem ter sobre ele fiscalização alguma, exceto a fiscalização da opinião pública formada dos possuidores de escravos. Se um escravo fugisse e fosse capturado, era direito do seu senhor marcá-lo com fogo ou crucifica-lo. Augusto[8] se vangloriava por ter capturado trinta mil escravos fugitivos e crucificado cada um que não tinha dono que o buscasse. Se um escravo se revoltasse por alguma dessas ou outras ações cometidas por seu senhor e o matasse, a lei sentenciava que fossem mortos todos os escravos do senhor morto. Quando Pedanio II foi morto em 61 d.C. e seus quatrocentos escravos foram condenados à morte, uma minoria dos órgãos do senado protestou contra esta sentença; um furioso grupo também pediu que a compaixão fosse usada, porém o Congresso insistiu na aplicação da lei, crendo que o senhor só estará assegurado entre os seus escravos com a utilização de rigidez igual a essa[9].
Enfim, a lei romana concedeu aos senhores o direito de matar o seu escravo ou deixa-lo sobreviver. O número de escravos era altíssimo, a ponto de alguns dos historiadores romanos citarem que o número de escravos nos mamalik romanos era três vezes maior que o número de pessoas livres[10].
Quanto à situação da mulher nesta sociedade, um grande concílio que discutiu sobre os assuntos da mulher a considerou um ser que não tem alma e, que por isso, não herdará a Vida que é impura, que não pode comer carne, não pode rir, e a proibiram de falar a ponto de colocarem um cadeado de ferro em sua boca[11].
Como resultado disso tudo que citamos, a estrela da civilização romana começou a escurecer, a ponto de se diluírem as bases da virtude e se destruírem os alicerces da moralidade. Edward Gibbon retratou isso dizendo: “No fim do século VI o império chegou ao último ponto em decadência”[12].
[1] Ahmad Shalabi: Enciclopédia da Civilização Islâmica 1/56.
[2] Constantino I: (272 – 337 dC) Imperador romano cujo governo foi uma revolução na história do Cristianismo, ele impôs o Cristianismo sobre o Império Romano, ele foi quem convidou para o Concílio de Nicéia em 325 dC, e construiu Constantinopla.
[3] Veja: Ahmad Shalabi: Enciclopédia da civilização islâmica 1/56-57.
[4] Idem 1/58-59.
[5] Ibn Nabatah Al Masri: Sarh Al Uiun, p. 36. E Ibn Al Nadim: Al Fihrast, p 333.
[6] Ahmad Shalabi: Encilopédia da civilização islâmica 1/57-60.
[7] Abu Al Hassan Al Nadawi: O que o mundo perdeu com a decadência dos muçulmanos, p. 43.
[8] Augusto César: Conhecido como Augusto (62 a.C. – 14 a.C.), seu nome é Caio Júlio César Otaviano, era o único herdeiro de César, o ditador romano.
[9] Will Durant: A História da Civilização 10/370-371.
[10] Ahmad Amin: A Alvorada do Islam, p. 88.
[11] Ahmad Shalabi: Comparação entre as religiões 2/188. E Afif Tayiarah: O espírito da religião islâmica, p. 271.
[12] Edward Gibbon (1737-1794): Historiador inglês, escritor do livro A história do surgimento e da decadência do Estado Romano.