A Honestidade Científica na Civilização Islâmica

A Honestidade Científica na Civilização Islâmica

 

Dr. Ragueb El Serjani

Tradução: Sh. Ahmad Mazloum

          A honestidade científica também é considerada um novo princípio que só ficou conhecido depois do surgimento do Islam. Com a ausência de religião e moral ninguém hesitaria em atribuir as várias descobertas para si com a finalidade de lucro e fama.

A honestidade científica requer o respeito aos direitos intelectuais e científicos e a atribuição dos empenhos e descobertas aos seus donos, porém a comunidade científica muçulmana sofreu muito com o roubo de suas pesquisas e descobertas e com a atribuição a estudiosos ocidentais que nasceram dezenas ou centenas de anos mais tarde.

Não é segredo para ninguém hoje o roubo hediondo que ocorreu ao nosso grande estudioso Ibn Al Nafis, o descobridor da circulação pulmonar, que gravou sua descoberta com precisão em seu livro Sharh Tashrih Al-Qanun (ilustração da anatomia da lei). Porém, este fato foi ocultado durante longos séculos, e foi atribuído posteriormente ao médico inglês William Harvey[1], que estudou a circulação do sangue mais de três séculos após a morte de Ibn Al-Nafis. As pessoas acreditavam nessa ilusão até que o médico egípcio Muhyi-Al-Din Al-Tatawi esclareceu a verdade.

Em 954 d.H. (1547 d.C.), o médico italiano Albago traduziu seções do livro de Ibn Al-Nafis Sharh Tashrih Al-Qanun para o latim. Esse médico permaneceu por quase 30 anos na província de Al-Ruha e dominou o idioma árabe para traduzir do árabe para o latim, e a seção sobre a circulação de sangue no pulmão era uma das seções traduzidas, porém essa tradução foi perdida. E é ponto de consenso que um estudioso espanhol chamado Servet, que nada tinha a ver com a medicina e estudou na Universidade de Paris teve acesso ao que Albago traduziu do livo de Ibn Al-Nafis. No entanto, ele foi expulso da universidade por ser suspeito em sua crença e foi deslocado entre as cidades até que, finalmente, foi queimado  até a morte juntamente com a maioria de seus livros no ano 1065 d.H. (1553 d.C.).No entanto, alguns de seus livros ficaram ilesos, entre os quais a tradução do livro de Ibn Al-Nafis sobre a circulação do sangue. Os pesquisadores, então acreditaram que esta descoberta da circulação do sangue foi feita pelo estudioso espanhol e por Harvey após ele. Esta crença permaneceu até 1343 d.H. (1924 d.C.), quando o médico egípcio Dr. Muhyi-al-Din Al-Tatawi corrigiu esse equívoco e devolveu o direito ao seu proprietário. Al-Tatawi encontrou uma cópia do manuscrito do livro de Ibn Al-Nafis na biblioteca de Berlim, ele preparou um doutorado sobre ele, e desenvolveu uma área dessa grande obra, que é o tema da circulação sanguínea. Ele obteve seu doutorado em 1343 d.H. (1924 d.C.).

Seus professores e supervisores ficaram atordoados com a tese. Eles se surpreenderam ao ler o seu conteúdo e quase não acreditaram! Por não conhecerem a língua árabe, eles enviaram uma cópia da tese orientalista alemão Dr. Meyerhof[2], que residia no Cairo, e pediram a sua opinião sobre a tese de Al-Tatawi. Meyerhof  apoiou Al-Tatawi e em uma de suas pesquisas sobre Ibn Al-Nafis, Meyerhof disse:

 

  O que me impressionou é que algumas frases básicas de Servet foram semelhantes, porém idênticas às de Ibn Al- Nafis, que foram traduzidas literalmente. Isso significa que Servet, que era um clérigo liberal e não era um médico, mencionou a circulação pulmonar igual à menção de Ibn Al-Nafis, que viveu mais de um século e meio antes dele.

Então, Meyerhof informou George Sarton[3] sobre o fato que  ele descobriu sobre Ibn Al-Nafis, e Starton publicou este fato na última parte de seu famoso livro A história da ciência[4]!

Aldo Mieli[5] leu as duas versões e disse: "Ibn Al-Nafis tem uma descrição da circulação pulmonar idêntica ao de Servet, suas palavras correspondem completamente às palavras de Servet. Portanto, a descoberta da circulação pulmonar deve ser atribuída a Ibn Al-Nafis, não Servet ou Harvey”[6].

Plágios desse tipo e a prática da desonestidade científica contra os estudiosos muçulmanos não são em pouca quantidade. Basta-nos enumerar os seguintes fatos:

A ciência da sociologia foi atribuída ao judeu francês Durkheim[7], enquanto o estudioso muçulmano Ibn Khaldun foi quem descobriu e fundou esta ciência.

As leis do movimento foram atribuídas a Isaac Newton, enquanto os dois estudiosos muçulmanos Ibn Sina e Ibn Hibatullah Malka[8] descobriram estas leis.

No livro de Roger Bacon[9], conhecido como Cepus Majus, encontramos um capítulo inteiro (o capítulo cinco), que era nada mais que uma tradução literal do livro de Ibn Al Haytham, intitulado Al-Manazhir. Em seu livro, Bacon nunca mencionou o autor original do artigo.

     Isso tudo aconteceu com os muçulmanos, mas os muçulmanos tinham uma abordagem diferente, que é a honestidade científica e a atribuição do esforço e do crédito a seus criadores. Esse hábito fez com que eles nunca alegassem uma descoberta científica sendo que esta era de outros cientistas de outras civilizações. Ao contrário, seus livros estão repletos de nomes de cientistas dos quais citaram, como Hipócrates[10], Galeno[11], Sócrates, Aristóteles e outros. Os muçulmanos deram o devido apreço e estima a estes cientistas de forma clara e jamais esqueceram o nome de algum deles, mesmo que a sua contribuição para o livro fosse pequena.

Por exemplo, os filhos de Mussa ibn Shakir citaram em seu livro Ma'rifat Misahat Al-Ashkal Al-Basitah wa Al-Kurriyah (A aprendizagem do espaço das formas simples e esféricas):

 Tudo o que descrevemos em nosso livro é trabalho nosso, exceto o conhecimento da diferença entre a circunferência e o diâmetro, que é trabalho de Arquimedes[12], e exceto o conhecimento da colocação de dois montantes entre outros dois montantes para chegar a uma só proporção, que é o teorema de Menelau[13][14].

Você também pode ver o que o famoso médico muçulmano Abu Bakr Al-Razi, disse em seu livro Al-Hawi, um dos maiores livros da história da medicina, como ele disse: "Eu tenho reunido neste livro frases e sinais da indústria da medicina, que eu extraí dos livros de Hipócrates, Galeno, Ormasus e outros médicos antigos, e outros mais modernos, como Paulo, Aaron, Hunain ibn Ishaq[15], Yahya ibn Masawayh[16]..., e outros”[17].

Além disso, encontramos na biblioteca islâmica livros de cientistas estrangeiros traduzidos em cópias separadas e atribuídas aos seus autores. Os estudiosos muçulmanos, muitas vezes comentaram estas obras, sem interferir no texto a fim de preservar a ideia do autor, sem distorção. Por exemplo, o estudioso muçulmano Al-Farabi[18] fez comentários sobre o livro A Metafísica de Aristóteles.

Essa honestidade científica honrosa foi realmente uma das maiores virtudes dos estudiosos muçulmanos e um dos fundamentos mais importantes através do qual os muçulmanos mudaram a o método e a maneira de pensar dos estudiosos anteriores. Isso é importante principalmente para as pessoas das nações modernas, porque não conhecem a história dos seus antepassados. Portanto, era muito fácil roubar suas pesquisas, não fosse a dimensão moral profunda dos estudiosos muçulmanos.

 


 

[1] William Harvey: (1578 – 1657 d.C.) Médico inglês, é conhecido no Ocidente como o descobridor da circulação pulmonar e do trabalho do coração como um bombeador.

[2] Max Meyerhof: (1291 – 1363 d.H. / 1874 – 1945 d.C.) Orientalista e médico oftalmologista alemão. Aprendeu a língua árabe e visitou o Egito em 1903 d.C. e viveu lá, morreu no Cairo. Teve interesse exclusivo pela medicina e farmacologia na civilização islâmica.

[3] George Sarton: (1884 – 1956) Um dos mais proeminentes historiadores do mundo, de origem belga. Especialista em ciências naturais e matemática.  Lecionou em universidades americanas e na Universidade Americana em Beirute. O mais famoso de seus livros é A História da Ciência.

[4] Veja: Muhammad Al Sadiq Áfifi: O desenvolvimento do pensamento científico entre os muçulmanos, p. 208, e Ali Abdullah Al Difaa: Os pioneiros da medicina na civilização islâmica, p. 451.

[5] Aldo Mieli: (1879 – 1950) Orientalista italiano. Escritor do livro A ciência entre os árabes e seu impacto no desenvolvimento mundial).

[6] Veja: Ali Abdullah Al Difaa: Os pioneiros da medicina na civilização islâmica, p. 451.

[7]

[8]

[9]

[10] Hipócrates filho de Heráclito: (460 a.C.– 355 a.C.): apelidado de pai da medicina, uma das mais famosas personalidades científicas na história, aprendeu a medicina com seu pai e tornou-se hábil médico. A ele é atribuída a idéia do juramento feito pelos médicos.

[11] Galeno (130 – 200 d.C.): médico grego, um dos mais proeminentes médicos da história, considerado um dos fundadores da anatomia.

[12] Arquimedes: (287 a.C. – 212 a.C.) estudioso naturalista e matemático, um dos maiores matemáticos da era antiga, considerado pai da geometria.

[13] Menelau: Viveu em meados do primeiro século cristão, um dos sábios gregos da geometria, tem obras que tiveram grande atenção da parte dos muçulmanos, como trabalhos sobre triângulos esféricos e sobre astronomia.

[14] Filhos de Mussa ibn Shakir: Ma'rifat Misahat Al-Ashkal (A aprendizagem do espaço das formas), escrita de Nassir Al Din Al Tussi, p. 25.

[15] Hunain ibn Ishaq: Abu Zaid Hunain ibn Ishaq Al Ábbadi (194 – 260 d.H. / 810 – 873 d.C.) médico, historiador e tradutor do povo de Al Hairah, no Iraque. Tinha conhecimento da língua grega, siriânica e persa. Teve contato com o califa Al Ma’mun, que o designou para a repartição de tradução. Veja: Ibn Annadim: Al Fihrast, p. 409 e Ibn Abu U’ssaibi’ah: U’iun al Anba 2/128-138.

[16] Yahya ibn Masawayh (João): Abu Zakaria Iuhanna ibn Masawayh, médico hábil de origem siriânica,  árabe de criação. Serviu a Al Rashid, Al Ma’mun e outros até a época de Al Mutawakkil, tratando-os e aos seus doentes. Morreu em Samarrá em 243 d.H. / 857 d.C. Veja: Ibn Annadim: Al Fihrast, p. 411 e Ibn Abu U’ssaibi’ah: U’iun al Anba 2/109-122

[17] Ibn Abu U’ssaibi’ah: U’iun al Anba fi Tabaqat Al Atibba 1/70.

[18] Al Farabi: Abu Nasr Muhammad ibn Muhammad ibn Tarkhan Al Farabi (260 – 339 d.H. / 874 – 950 d.C.), o turco sábio, o maior dos filósofos muçulmanos. Nasceu em Farab e morreu em Damasco. Veja: Ibn Khalikan: Wafyiat al A’aian 5/153 – 156.