A Misericórdia... Sua Importância e Exemplos

A Misericórdia... Sua Importância e Exemplos

A Misericórdia... Sua Importância e Exemplos

Dr. Ragueb El Serjani

Tradução: Sh Ahmad Mazloum

 

        A primeira coisa que chama a atenção no Livro de Allah – que é o estatuto dos muçulmanos e a mais importante fonte legislativa – é que todas as suas suratas – exceto a surata Attaubah – tem início com al bassmalah (Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso), que contém as qualidades de Allah: o Clemente, o Misericordioso (Arrahman, Arrahim). Não é segredo para ninguém que o início de todas as suratas com estes adjetivos tem a sua indicação clara sobre a importância da misericórdia na Lei islâmica. Também não é segredo para ninguém que o significado dos termos Arrahman e Arrahim são muito próximos (os quais traduzimos como “o Clemente”, o “Misericordioso”, e os sábios têm muitos detalhes e várias opiniões sobre a diferença entre os dois termos[1].  Era possível que Allah (exaltado seja) unisse este adjetivo da misericórdia a outro de Seus adjetivos, como por exemplo: o Grandioso (Al Ádhim), o Sábio (Al Hakim), o Oniouvinte (Assamí) ou o Onividente (Al Bassir). Era possível unir entre a misericórdia e outro adjetivo que carregue um significado que desempenhe um equilíbrio para o leitor, para que o adjetivo da misericórdia não o envolva. O exemplo disso são os nomes de Allah: o Invencível (Al Jabbar) e o Dominador (Al Qahhar).

          Porém, a união entre estes dois adjetivos próximos (em seu significado) no início de todas as suratas do Alcorão Sagrado dá uma claríssima impressão: a característica da misericórdia tem prioridade, incontestamente, sobre todas as outras características, e o lidar com a misericórdia é a base que jamais desmorona e não fraqueja frente às outras bases além dela.

          Este significado é confirmado pelo fato de a primeira surata do Alcorão Sagrado[2], que é Al Fatihah (A Abertura), ter sido iniciada com al bassmalah – que tem os dois adjetivos Arrahman e Arrahim como todas as outras suratas e, em seguida, observamos que a surata tem os dois adjetivos repetidos no meio da mesma surata. Esse início do Alcorão Sagrado exatamente com esta surata (Al Fatihah) também tem a sua significância clara. Sabemos que é obrigação do muçulmano ler Al Fatihah em todas as genuflexões (rak´áh) das orações diariamente. Isso significa que a pessoa repete o termo Arrahman no mínimo duas vezes, e repete o termo Arrahim no mínimo duas vezes, assim lembra a misericórdia de Allah (exaltado seja) quatro vezes em cada uma das genuflexões da oração. Isto significa que o servo repete a característica da misericórdia todos os dias 68 (sessenta e oito) vezes durante as 17 (dezessete) genuflexões que representam as orações obrigatórias que o muçulmano reza. Isto nos dá uma boa imagem da extensão da celebração desta sublime característica: a misericórdia.

          Tal fato revela muitos dos dizeres do mensageiro (a paz esteja com ele) nos quais ele descreve a misericórdia do Senhor do Universo. Dentre estes dizeres:

 

Da narração de Abu Hurairah, disse o mensageiro de Allah (a paz esteja com ele): “Allah fez uma escrita antes de criar a criação: ‘A minha misericórdia prevalece sobre a minha ira’, então isto está escrito com Ele acima do Trono”[3].

 

          Esta é uma publicação clara de que a misericórdia antecede a ira, e que a amabilidade antecede a austeridade.

          Além disso, Allah, exaltado seja, enviou o mensageiro do Islam como misericórdia para a humanidade e como misericórdia para todo o Universo. Disse Allah: “E não te enviamos senão como misericórdia para o Universo” (Al Anbiá: 107). O profeta (a paz esteja com ele) traduziu isso em sua pessoa e em seu relacionamento com seus companheiros e com seus inimigos por igual. Ele incentivou e estimulou que a pessoa se caracterize com esta nobre conduta e nobre valor dizendo: “Allah não tem misericórdia de quem não tem misericórdia das pessoas”[4]. O termo “as pessoas” neste texto é um termo geral que abrange a todos, sem considerar raça ou religião. Os sábios disseram sobre isso: “Isto é geral, abrange a misericórdia para com as crianças e outros”[5]. Ibn Battal[6] disse:

 

Este texto tem um incentivo para o uso da misericórdia com todas as criaturas, entra nesse caso o crente e o descrente, os animais (irracionais) sejam os que tem dono e os que não tem, e faz parte da misericórdia a rotina de lhes dar alimento e bebida, amenizar a carga e abandonar a agressão”[7].

          Em outro hadith, o mensageiro (a paz esteja com ele) fez um juramento: “Juro por Aquele em cuja mão está a minha alma! Allah não põe Sua misericórdia senão sobre um misericordioso”. Disseram: Ó mensageiro de Allah, todos nós somos misericordiosos. Ele disse: “Não é a misericórdia de um de vós com o seu companheiro. Mas tem misericórdia de todas as pessoas”[8]. Portanto, o muçulmano tem misericórdia das pessoas em geral, crianças, mulheres e idosos, muçulmanos e não muçulmanos. O profeta (a paz esteja com ele) também disse: “Tendes misericórdia de quem está na terra, assim, quem está no céu terá misericórdia de vós”[9]. O termo “quem” abrange tudo o que existe na terra.

          Assim é a misericórdia na sociedade dos muçulmanos, tal valor moral prático que expressa a compaixão do ser humano com o seu irmão ser humano. É uma misericórdia que ultrapassa o ser humano com as suas variadas raças e religiões até o animais irracionais, até os rebanhos, pássaros e insetos!

          O profeta (a paz esteja com ele) declarou que uma mulher entrou no Inferno porque foi rude com um gato e não teve misericórdia dele. Disse o profeta (a paz esteja com ele): “Uma mulher entrou no Inferno por causa de um gato que ela amarrou, não o alimentou e não o deixou comer dos bichos da terra”[10].

          Ele também declarou que Allah (exaltado seja) perdoou um homem que teve misericórdia de por um cão. Disse o profeta (a paz esteja com ele):

 

“Quando um homem estava num caminho e sentiu forte sede encontrou um poço, desceu nele e bebeu. Em seguida, saiu e encontrou um cão a arquejar e lamber a terra de sede. O homem disse: ‘Este cão chegou a sentir sede igual à que eu senti’. Desceu ao poço novamente e encheu sua meia de água, a segurou em sua boca e subiu para dar água ao cão. Allah agradeceu-lhe perdoando-lhe os seus erros”. Os companheiros do profeta (a paz esteja com ele) disseram: ‘Ó mensageiro de Allah, nós temos recompensa sobre (o bom trato para com) os animais?’ Ele respondeu: ‘Em todo ser vivo vós tendes recompensa’”[11].

 

          Ainda mais, o mensageiro (a paz esteja com ele) declarou que as portas do Paraíso se abriram para uma adúltera que teve misericórdia por um cachorro em seu coração! Disse o mensageiro (a paz esteja com ele): “Enquanto um cachorro rodeava um poço quando estava a morrer de sede, uma das prostitutas dos filhos de Israel o observou, então tirou a sua meia e lhe deu de beber. Então, ela foi perdoada”[12].

          Um indivíduo pode se surpreender: o que é um cão morrendo de sede perto do crime de adultério?! Porém, a realidade reside por detrás da ação: é a misericórdia que está no coração do ser humano, conforme a qual ocorrem as suas ações e seu trabalho e a extensão de sua marca e valor na sociedade humana em geral.

          O Islam também pregou a misericórdia com o animal irracional, para que este não passe fome ou seja sobrecarregado acima de sua capacidade! Com extrema misericórdia, o profeta (a paz esteja com ele) passou na frente de um camelo tomado pela fraqueza e disse: “Temam a Allah sobre estes animais mudos... montem-nos íntegros e se alimentem deles íntegros”[13].

          E um homem disse: “Ó mensageiro de Allah, eu tenho misericórdia da ovelha quando vou abatê-la”. Então, o profeta (a paz esteja com ele) disse: “Se tiverdes misericórdia da ovelha, Allah terá misericórdia de ti”[14].

          O Islam também ultrapassa o limite da misericórdia com os animais para a misericórdia com os pequenos pássaros, dos quais o ser humano não se beneficia como se beneficia com os outros animais. Você observa o profeta (a paz esteja com ele) dizer sobre um passarinho: “Quem matar um passarinho em vão, ele reclamará no dia da ressurreição: ‘Ó Senhor, Fulano me matou em vão, e não me matou para um benefício!’”[15].

          Os historiadores narram que durante a conquista do Egito, uma pomba desceu sobre a tenda de Ámr ibn Al Áss (o grande líder muçulmano que liderou a conquista do Egito) e construiu seu ninho em cima da tenda. Quando Ámr queria partir viu esta pomba, não quis expulsá-la ao desmontar a tenda, então deixou a tenda, e as construções se multiplicaram ao redor da tenda.  Assim se formou a cidade de Fustat (que significa tenda).

          Ibn Abdil Hakam[16]  narra sobre a biografia do califa probo Omar ibn Abul Áziz, que ele proibiu que se faça os cavalos correrem, exceto por necessidade; escreveu a um de seus responsáveis pelas plataformas que não carregue ninguém com carga pesada e que não bata com “martelo” de ferro; e escreveu para o seu governador no Egito: “Fui informado que há camelos cargueiros no Egito, e que cada camelo é carregado com um mil ratl, quando receberdes esta minha mensagem, não quero ser informado que um camelo é carregado com mais de seiscentos ratl”[17].

          Assim é a misericórdia na sociedade muçulmana, que se apoderou dos corações de seus membros e filhos, assim você os vê tendo compaixão com o fraco, tendo dor por causa do triste e do necessitado, tendo pena do doente, mesmo que seja um animal irracional. Com estes corações vivos e misericordiosos a sociedade se purifica, evita a criminalidade e se torna uma fonte de benfeitoria, virtude e paz ao seu redor e para quem está ao seu redor.

 


[1] Ibn Hajar: Fath al-Bari, 13/358, 359.

[2] O ordenamento das suratas do Alcorão Sagrado são tauqifi, ou seja: Allah revelou ao Seu mensageiro (a paz esteja com ele) para organizar a ordem o Alcorão na ordem que conhecemos hoje, sendo que as suratas e versículos foram revelados em ordem diferente. Veja: Abu Abdullah Zarkashi: Al Burhan fi Úlum Al Qur’an (O Argumento nas Ciências do Alcorão) 1 / 260.

[3] Al-Bukhari: Kitab al-Tauhid (Livro do Monoteísmo) (7115), e Muslim: Kitab Al-Taubah (Livro do arrependimento)  (2751), e Al Bukhari: Livro começo da criação (3022).

[4] Al-Bukhari: Kitab al-Tauhid (6941), e Muslim: Kitab Al-Fadhaíl (Livro das Virtudes) (2319).

[5] Al Minhaj Fi Sharh Sahih Muslim Ibn Al Hajjaj (O Sistema na Interpretação da Coletânea de Muslim Ibn Al Hajjaj) 15/77.

[6] Ibn Battal: Khalaf ibn Ali ibn Abdul Malik ibn Battal, também conhecido como Ibn Al lajam. Foi um grande estudioso, tinha muito conhecimento e compreensão, ótima letra e memória excelente. Explicou Sahih Al Bukhari em vários volumes. Morreu em 449 d.H. Veja: Al Zarkali: Al A’lam 4 / 85, e Al Zhahabi: Siar A’Alam Annubala 18/47.

[7] Al Mubaarakfuri: Tuhfat Al Ahwuazhi bi sharh jamií Al Tirmizhi, 6 / 42.

[8] Musnad Abu Yala (4258), e al-Bayhaqi: Shu’ab Al Iman (11 060).

[9] Al-Tirmidhi da narração de Abdullah ibn Amr (1924) e Ahmad (6494), e Al Hakim (7274) e outros.

[10] Al-Bukhari: O Livro do início da criação, a seção cinco dos animais Vos assassinado na Grande Mesquita (3140), e muçulmanos: Livro de arrependimento, a porta na capacidade da misericórdia de Deus e que precedeu a sua ira (2619).

[11] Al Bukhari (5663) e Muslim (2244).

[12] Al-Bukhari: O Livro dos Profetas, a porta "e calculou que os companheiros da caverna e da inscrição" (3280), e muçulmanos: Livro da Paz, o capítulo sobre a virtude e as pernas respeitável de alimentação do gado (2245).

[13] Abu Daud: Livro de Jihad, o que é chamado a fazer para os animais e bestas (2548) e Alves (17 662) e disse Shoaib Arna'oot: atribuído corretamente homens de confiança o homem certo. E Ibn (546), e Al-Albani disse: É verdade. Veja: Incorrect string (23).

[14] Ahmad (15630), Al Hakim (7562) e Al Tabarani (15716). E Al-Albani. Veja: Sahih Al Targhib wal Tarhib (2264).

[15] Annassaí (4446), Ahmad (19 488), e Ibn Hibban (5993) e outros.

[16] Ibn Abd al-Hakam: (187 d.H. - 257 d.C.), Muhammad ibn Abdullah ibn Abd al-Hakam, Abu al-Qasim, um historiador e jurista maliki. Nasceu e morreu no Egito. Veja: Al Zarkali: Al A’alam 3 / 282.

[17] Ver: Muhammad ibn Abdullah ibn Abd al-Hakam: A Biografia de Umar ibn Abdul Aziz, 1 / 141.